Crónicas da viagem a Barca D'Alva

Espaço, silêncio, inspiração e tempo, muito tempo para divagar, meditar e descobrir as ideias e palavras certas...

quinta-feira, março 02, 2006

capítulo 6

Ainda o “gigante de ferro” não parou de frenar, e já se ouvem as Sra’s dos rebuçados.
Parado, por fim na plataforma, levanto-me o vou até à porta da carruagem. Do lado de fora uma sra. Vestida d branco com um cesto de verga no braço esquerdo diz-me: “- Ò menino, não quer um rebuçadinho da Régua, olhe que é para a viagem!”
Espanta-me esta personagem. Seja Verão ou Inverno estão sempre por ali. Aquela plataforma conhece-as como ninguém, e acostumou-se de tal modo a elas que se elas não estiverem por lá sente a sua falta.
São um marco estas vendedoras de doces. Doces da região duriense, baptizados com o nome da sua capital.
Será que o doce, 100% mel é produzido também nas encostas desta terra?

(Investigar a origem do rebuçado da régua…)

Sorrio. É deste modo que retribuo o texto preparado para centenas de viajantes que, durante 10 min., têm na estação da Régua um momento de pausa na viagem.
Compreender-se-ia esta espera, se à cabeça estivesse uma máquina a vapor, sequiosa de água e lenha para poder continuar a subir em direcção à fronteira. Mas os tempos são outros e o som do motor a diesel à muito que substituiu os sons característicos da máquina a vapor.
Talvez por tradição se continue a parar aqui. Poderá especular-se se não será para levar clientela até às sras. dos rebuçados. Mil e uma hipóteses se colocam. Provável seria também, não terem alterado os horários desde o tempo do vapor…
O tempo é passado a conversar sobre o material que jaz nas linhas da estação da régua. Estão por lá enumeras composições que durante anos a fio percorreram para lá e para cá a linha do Corgo.
As explicações e fotos foram subitamente interrompidas pelo som da buzina da 1400, avisando todos os passageiros que estão no cais para entrarem.
Lentamente saímos da estação. Circulamos agora sobre duas linhas, a de sempre, a Linha do Douro que nos há-de levar ao Pocinho e no interior desta, a Linha do Corgo. São poucos quilómetros de um troço único com duas histórias distintas.

(Falar da linha do Corgo…)

A composição avança e passamos ao lado da barragem da Régua. Rapidamente, e sempre com o rio Douro do nosso lado direito fazemos mais uma paragem para permitir mais um cruzamento de composições.
Desta feita, a estação que se segue é o Pinhão. A neblina e a luminosidade do dia transfiguram a paisagem. Podíamos ficar tristes por Alguém não ter querido que o sol aparecesse e revelasse todo o esplendor da região. Mesmo assim, o Douro torneia as condições atmosféricas e mostra-nos uma beleza alternativa. As nuvens “engolem” os montes e a neblina sobre os socalcos afirmam que também merecem atenção. É para lá que se volta a minha objectiva enquanto aguardo pela 1400 que se segue.
Como não chega, volto-me para o lado esquerdo, onde reside a estação. Saio da composição e, um em cada janela, os companheiros desta aventura mostram as suas cabeças.
Com a máquina em punho primo o botão de disparo e registo mais um momento para a posteridade.
Volto-me e tomo atenção à 1411. O enquadramento desta máquina com um velho armazém de madeira escura e uma placa com a inscrição a dizer “Pinhão” são mais um motivo de registo. Interrogo-me sobre que sairá primeiro. Será que é o armazém, já muito antigo e provavelmente único por estas bandas, ou a locomotiva, essa velha máquina inglesa que tem algumas “gémeas” com bilhetes pagos de ida para a Argentina?
Pelo sim, pelo não, e para mais tarde comprovar, acrescento mais uma foto à conta da minha máquina.
Desta vez quem cruza connosco é a 1455. As carruagens que trás a reboque, para não variar, são 4 e iguais às da nossa composição.
Efectuado o cruzamento, temos sinal para avançar.
O Douro continua a revelar-se, e o tão característico barco rabelo surge por entre o nevoeiro.
Sito na outra margem perto de um cais e com um monte enevoado como pano de fundo, tem-se um cenário muito característico. Poderia tentar perder horas a descrever a paisagem, mas se existem alturas em que uma imagem vale mais que mil palavras, esta é sem dúvida uma delas…
Para desentorpecer as pernas resolvemos passear até à ultima carruagem. O serviço de bar cessou a sua actividade na Régua. O balcão do bar está agora vazio. Esta carruagem é mais antiga que as outras três, contudo não consigo encontrar a placa de fabrico no seu interior. Percorro o espaço amplo do bar até uma porta que dá acesso aos compartimentos de 1ªclasse. Alguns deles estão vazios, noutros as pessoas que neles viajam conversam, dormem ou lêem o jornal do dia. A porta que daria acesso a outra carruagem, se houvesse, está fechada. Torna-se por isso um sítio seguro e privilegiado para fotografar o caminho que percorremos.
Por entre as fotos surge uma tertúlia acerca da idade dos constituintes da linha. Perto do Tua, esta linha tem tido alguma manutenção ao longo dos tempos. A queda de pedras tem provocado alguns danos que requereram uma intervenção mais profunda em alguns pontos.
Mais para frente a linha, que está limitada a velocidades inferiores, tem mais elementos de origem. Contudo discutiu-se sobre a idade de algumas das travessas. Apostou-se que poderiam ser do tempo da rainha Dna. Amélia.
Mais conversação sobre temas ligados à ferrovia e da janela avistam-se alguns trabalhadores que, depois do Natal voltam à linha para reparar aqui e ali uns pontos que merecem mais atenção.
Passamos uma ponte e chegamos à estação do TUA. Aqui, muitas das pessoas que viajavam connosco saem e atravessam a linha para do outro lado apanharem o dito metro de Mirandela.
As composições são em tudo iguais às das outras linhas de via estreita que complementam a Linha do Douro. A diferença está na cor. Enquanto que as das linhas anteriores são vermelhas estas são verdes, ou pelo menos eram, ou aparentam ser por entre os grafitis que ao longo do tempo foram tomando estes veículos.
No comboio ficam meia dúzia de viajantes que anseiam a chegada ao Pocinho. Estes resistentes acomodam-se agora mais à vontade.
Sem cruzamentos, o tempo que a composição está parada é gasto a fotografar as pessoas que saem e os velhos veículos de via estreita que apodrecem nas linhas de resguardo. Estão uma máquina a vapor e algumas carruagens pré-históricas, do tempo da inauguração da linha num coberto. Nas linhas de resguardo estão algumas, talvez as únicas, carruagens Napolitanas que conheço.
Do fundo da composição mal se ouve a buzina e o movimento lento da carruagem a afastar-se em direcção ao Pocinho é o único aviso para todos os sentidos. Ao reparar nisso entrámos à pressa pela última porta.

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Olha o rebucado da regua!!

Subito transportar a uma infancia inexistente: povoam a minha mente os rebucados da regua. Creio, todavia sem estar certo, que a minha avo Irene, que percorria a distancia que separava Mogadouro do Porto de comboio, oferecia a par do seu coracao, das suas maos prodigiosas na feitura das rosquilhas, rebucados da regua aos netos.

Existiam, em tempos, uma serie de livros de aventuras, intitulados "Viagens no tempo". Cada uma destas viagens pressupunha a existencia de um local com uma "brecha" no tempo. Estas senhoras que apregoam o acucar caramelizado na forma de rebucado, corporificam esta tenue ligacao que temos com o primeiro comboio a vapor que percorreu a linha do Douro. Ja nao ha carruagens de ferro, ou locomotivas que regurgitam nuvens de fumo preto, mas continuam a existir rebucados da Regua.

A verdadeira viagem, para mim, comeca mal saimos de S. Bento, perde-se em Campanha, retoma-se aqui. Existe enquanto acompanhamos lado-a-lado o curso sinuoso do rio que da nome, vida, espirito, caracter, ao que se diz serem "as gentes do Norte". Provincianas, rudes, diamantes em bruto. De olhar maduro, como o vinho que nasce nas encostas que cruzaremos de agora em diante.

Neste momento comeca o segundo canto desta grandiosa epopeia: o profundo vale do Alto Douro apresenta as suas portas.

Fotos até agora #2






Fotos até agora #1

Capítulo 5

Ao sair da Livração, percorre-se um curto percurso até chegarmos ao Marco de Canavezes. Apercebo-me que a ponte sobre o Tâmega já não tem a velocidade limite de 20Km/h. Concluo por isso, que as obras de beneficiação das fundações terminaram e a velha ponte de pedra apresenta-se com uma nova forma e com uns “sapatos” novos.
Embrenhado nestes pensamentos, sinto que o comboio já abranda, dando entrada na estação do Marco de Canavezes.
Esta estação é um local habitual para o cruzamento das composições. Como não chove desço da Sorefame à espera do comboio vindo do Douro. Poderá ser uma composição igual à que circulamos ou então será porventura uma UTD-0600. Esta composição, também ela fabricada na Sorefame em finais da década de 60 denomina-se por UTD, por ser a abreviatura de Unidade Tripla a Diesel. Mas nem sempre foi assim…
Originalmente foram concebidas como UDD’s, só mais tarde, na década de 80 viram a sua capacidade ser aumentada com a inserção de um compartimento central, não motorizado, semelhante a uma carruagem Sorefame.
Mas, a composição que apareceu não seria uma UTD, uma vez que a silhueta de um 1400 surgiu de entre os montes.
Já perto da plataforma reparo que a composição é constituída por carruagens Corrail. Estas carruagens, francesas, entraram ao serviço na CP na década de 80, fazendo desde então os comboios InterCidades.
Fontes dos caminhos-de-ferro, apontavam para a extinção deste serviço em meados de Outubro, pelo que foi com grande surpresa que pude fotografar, quem sabe pela última vez, este material nesta linha.
Esgotados os motivos de interesse dessa composição, voltei-me então para a que me transportava.
Reparei que de uma janela o Daniel apreciava e registava com a máquina fotográfica os meus movimentos. Como o tempo era escasso, dei rapidamente uns passos atrás para ter um ângulo favorável à objectiva da minha Canon.
Um, dois, três disparos e já a buzina afinada da 1411 soa avisando que está com pressa para chegar ao Pocinho.
Entro já com a composição em andamento…

O comboio acelera até à sua velocidade de “cruzeiro” e ao passar alguns montes surge do nosso lado direito o Rio Douro. Deste ponto até à ponte da Ferradosa a linha irá acompanhá-lo. Do outro lado veremos sobretudo monte e as estações.
Pressentindo que o dia poderá ser cansativo sentamo-nos a conversar. Entre teorias, fotos e uns filmes made in “Daniel’s cam” chegamos a Mosteirô. Por aqui as coisas estão muito diferentes do que vai sendo constatado no resto do país. A velha estação está a receber obras de reabilitação. Tudo está a ser alvo de uma intervenção. Apenas os típicos azuleijos com o nome da estação se mantêm a descoberto, para que nenhum passageiro mais distraído se esqueça de que chegou a Mosteiro.
A viagem prossegue até à próxima paragem, Ermida.
Nesta estação cruzamos com uma composição igual à nossa. Por esquecimento ou distracção devido à conversa animada, esqueço-me de ligar a máquina e apenas registo as imagens da última carruagem. A dita composição parte primeiro que nós e, ainda bem, a linha faz uma curva à esquerda permitindo que da janela se fotografe o comboio gémeo que se dirige para S. Bento.
Felizmente o Daniel, de certo mais atento do que eu, registou o cruzamento. Assim posso afirmar, com base nos registos fotográficos que em Ermida cruzámo-nos com uma composição que trazia a 1414 à cabeça.
Saindo de Ermida só falta um pequeno troço de … Km, que nos deixará no coração do Douro, na capital da região, onde as uvas se transformam em líquido. Nesse líquido que antepassados, com grande sabedoria, souberam “afinar”, transformando-o numa das maravilhas do país que se estende além fronteiras e que nós temos o dever de preservar. No estrangeiro, ao dizer que sou português, digo que sou do país onde é produzido o Vinho do Porto.

Chegamos à Régua…

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Capítulo 4



De Cête para a frente é sempre a descer até ao Rio Douro. A viagem, que até agora foi feita por entre prédios, fábricas e campos, vai ganhar novo interesse.
Não é por acaso que a Linha do Douro é uma das mais bonitas de Portugal. O traçado junto ao rio permite uma paisagem soberba de toda uma região que vive das vinhas, das amendoeiras.
Por entre vales apertados o Douro ganha vida, e história. Até as barragens, que para muitos vieram desfigurar a paisagem, são já uma parte integrante deste cenário.

(Descrever mais!!!)

Entramos no túnel…., a próxima estação é Livração. Sabendo disso preparo-me antecipadamente para mais umas fotos.
Numa das curvas, já fora do túnel, eis que um dos candeeiros se abre.
Nunca tal coisa tinha acontecido.
Com as paragens, outras pessoas “alojaram-se” nesta carruagem ficando admiradas com o aparato montado por quatro jovens rumo ao fim da linha.
Foi mesmo sobre algumas destas pessoas que o candeeiro cedeu.
Prontamente seguimos para reparar a situação. Como se pode imaginar, este acontecimento foi mais um motivo de interesse, digno da nossa aventura, perfeitamente contextualizado, embora tenha sido uma obra do acaso. Ou, talvez não!...
O mecanismo de fixação do candeeiro exige duas pessoas, assim eu e o Gustavo, em cima dos bancos, tentamos superar a situação. Enquanto isso o Daniel e o João tiram fotografias, (fica para eles os comentários sobre esse assunto).
Do lado do Gustavo as coisas não estão famosas e eu mudo de sítio para o ajudar.
A situação fica mais ou menos remediada, mesmo a tempo da paragem em Livração.

sexta-feira, janeiro 27, 2006

E foi então que

... cravei com força a minha bota no suporte de ferro da carruagem da Sorefame e fui inundado por um alívio metálico imenso. Agarrei-me bem e subi a bordo no exacto momento em que a silhueta do João passava, sem que este, no entanto, se desse conta que eu tinha ali acabado a minha aventura individual e começava outra naquele preciso instante, sim, estava a bordo.

Minutos antes tinha corrido atrás de algo que era incerto. Motivado por querer ser parte de algo importante, motivado por três amigos montados num cavalo de ferro que insistia em fugir, tinham também eles insistido para que eu levasse a saga até um final favorável. O facto de ter assistido à partida do comboio em Campanhã, e ter repetido a imagem em Ermesinde mostrou-me que não se pode hesitar, e que placas de indicação de estações nas localidades são de utilidade extrema ao iniciado a viajante-perseguidor-de-comboios. Foi assim que, depois de ter perseguido todas as placas existentes em Ermesinde até estas se esgotarem na proximidade da estação, e de, uma vez mais, ter assistido à partida do comboio no lado errado dos acontecimentos, as indicações claras do Pedro Nuno, conhecedor exímio da linha em questão e das propriedades das composições, auxiliado pelo João, e motivadas pelo Daniel, apontaram Paredes como o objectivo. Não poderia se mais claro e simples: Paredes, a última oportunidade para o tudo ou nada.

Comboio em linha, e eu novamente na estrada. O motor 1.0 do VW fez grande parte do trabalho deixou para trás o alcatrão homogéneo, monótono, e viria a bater os 1400 cavalos da locomotiva 1411 da CP. Pelo caminho, ia amaldiçoando a minha falta de preparação no dia anterior: arrastado de casa pelo tempo naquela manhã de Inverno, não tinha tido oportunidade de escolher roupa e material apropriados a uma viagem ao interior do Norte.

Na chegada a Paredes, decidi investir tempo ao perguntar ao funcionário da portagem o local da estação. Apesar da indicação errada, em que deveria ter seguido pela "outra direita", tal veio a demonstrar-se da maior utilidade: permitiu-me apontar na direcção certa numa cidade em que há tantas placas informativas como macacos que saibam ler as obras de Shakespeare. Do momento em que localizei a estação ao comboio foi um abrir e fechar de olhos: deixei o carro no primeiro lugar que surgiu e entrei na estação em sincronismo com a entrada da outra aventura sobre carris.

Subi a bordo. Para trás ficaram lençóis e tentativas falhadas. Trabalho de equipa, fase 1, terminado.

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Capítulo 3



Rapidamente chegámos a Campanhã.
Ao telefone, o Daniel explica ao Gus que estamos parados e que vamos partir dentro de 3 minutos…
-“Talvez ainda consigas apanhar o comboio aqui em Campanha”.
Eu, faço algumas contas, para saber qual a próxima estação. Rapidamente, com a ajuda do João chegamos à conclusão que as melhores hipóteses, alternativas a Campanha são, Ermesinde e Penafiel.
Cheguei a pôr a hipótese de Livração. Nutro por esta estação um carinho especial. Foi lá que tirei uma das mais bonitas fotos e onde passei algumas horas a conversar com um maquinista. Aprendi nessa tarde muito sobre a ferrovia e tive a oportunidade de entrar numa das antigas automotoras da Linha do Tâmega.
Foram apenas três, as automotoras que vieram para aquela linha. Duas delas tiveram um acidente, tendo sido recuperada somente uma delas. Ficaram duas, que acabaram os seus dias paradas na linha de resguardo da estação de Livração. Nessa tarde visitei uma delas fotografando para a posteridade o seu interior velho e sujo de tanto pó que se acumulou ao longo dos tempos. Lembro-me também da primeira vez que fui lá de carro. Percorri, a sentimento, caminhos, curvas contra curva no meio do nada até, por fim, encontrar uma placa, daquelas placas tão típicas que existem em muitas localidades, a direr: “Estação C. F.”.
Seria muito difícil para o Gustavo encontrar esta estação, ainda por cima numa posição de desvantagem.
Entretanto o comboio parte e, o Gus do lado de fora da estação, vê a velha composição afastar-se da plataforma.
O ânimo é reduzido, mas o incentivo é grande e ele lança-se à estrada.
“Vai pela A4 rumo a Penafiel.”
Rapidamente, e a todo o gás, iniciamos a subida para Contumil. Ao cimo o antigo apeadeiro transformado num grande parque de material circulante aguarda a nossa passagem. Este serviço só pára nas estações, por isso passamos à velocidade que foi possível ganhar durante a subida.
Dentro da carruagem vamos tirando fotos. O meu tripé, provavelmente um dos investimentos mais irreflectidos que já alguma vez fiz, mostra para que serve e faz-me pensar que afinal, poderá não ter sido uma má opção. Numa sucessão de fotos e de risadas, aproximamo-nos de Ermesinde.
Será desta que o homem consegue entrar no comboio?
As piores previsões verificam-se e, mais uma vez, o Gustavo vê a composição afastar-se. Ao telefone o Gus apresenta-se muito desmotivado, mas, mais uma vez, soltam-se incentivos de todos os que a bordo da Sorefame, (apenas três pessoas) sentem que a sua presença nesta aventura é fundamental.
Elaboro muito rapidamente uma teoria bastante convincente. Várias vezes percorri esta linha e conheço razoavelmente bem a sua topografia. Avizinha-se um percurso com muitas subidas até à estação de Cête. Uma 1400 com seis Sorefames não atinge muito mais do que 40 Km/h em alguns troços. Com umas contas muito rápidas, tento fazer uma previsão do tempo que poderemos demorar até Cête. São 4, como já referi, as carruagens que a composição trás. A locomotiva, embora tenha ido recentemente à revisão, já não tem a força de outros tempos, pelo que terá alguma dificuldade no percurso.
Assim, joga tudo a favor do Gustavo!
Face aos incentivos o homem faz-se à estrada.
O raciocínio e a pressa da manhã, impediram-me de cumprir um dos rituais mais importantes do dia. Tomar café tornou-se um imperativo para que o dia corra bem e para que o discernimento seja maior.
Embora não seja uma especialidade por aí além, tornou-se também um hábito tomar café a bordo do comboio. Num InterCidades, num Pendular e, agora neste serviço cujo nome não consigo precisar.
O João acompanha-me nesta saga. São 2 carruagens apinhadas de pessoas que foram passar o Natal ao Porto, que nos separam da carruagem bar.
Durante o percurso notamos nas “caricaturas” que vão surgindo. Serão bons motivos para fotos.
O Daniel ficou a guardar os lugares e todo o equipamento da espedição.
Chegados à dita carruagem, o ritual está próximo e é com um grande cerimonial que tomo o dito da manhã.
Entre conversa e fotos chegamos a Paredes.
Sem reparar, e quando iniciávamos o regresso ao nosso lugar, eis que surge o Gustavo.
“Esperava-te só em Penafiel, bem vindo a bordo!”
Passamos sem grande assunto de relevo as estações de Penafiel e Cête.

terça-feira, janeiro 10, 2006

6h50 - O outro lado.

O despertador tocou. Mas não o ouvi. Podemos considerar o telemóvel um despertador? Nunca sabemos se estamos perante o toque que nos incita a acordar ou o telefonema para o qual não queremos despertar.

É frequente não querer sair do envolver aconchegante de muitos cobertores: Tudo o que sabemos que é demais exige envolvimento. "Estou envolvido com ela.". "Olha, envolvemo-nos, e não sei que fazer agora". E eu já estava na cama há tempo demais. Umas 5 ou 6 horas para ser preciso. E sabia que uma aventura precisa de um súbito aclarear de mente.

Este turbilhão de pensamentos, que se lêem agora no tempo que leva os olhos a percorrerem cada uma das letras e dar-lhes um sentido, leva mais tempo dentro de nós, quando no aconchego dos cobertores. porque cada um destes pensamentos não está isolado: Todo e qualquer pensamento está encadeado. Em especial quando aqueles lencóis, aquele cobertor, aquelas paredes, aquele local tem qualquer coisa presente que não me abandona. Dificil esquecer que dormia sempre para o lado da janela, por favor, por estar orientada a Sudoeste. Uma linha perfeitamente traçada, perpendicular à minha espinha dorsal, levaria-me directo aos Açores. E daí ainda menos isolado está o pensamento. And so on, and so on. (Soi oni und Soi oni).

7h15m. Era esta, a hora. Chegado ao rés-do-chão, sem pequeno-almoco ou mais do que trouxas metidas ao acaso para uma mochila (entre as quais uma máquina fotográfica), não encontrei o Pedro. Pudera. Não tinha ficado marcado um local ao certo. Mas não sendo ali, e sabendo que ele não falhava, só podia ser no local de partida de toda e qualquer aventura: A Câmara Municipal de Gaia. Sim, não há outro local. Assim como não há verdadeiras aventuras sem comboios. Pelo menos, eu ainda não as tive. Talvez com aviões. Mas com um tram á chegada ou á partida.

Em suma, sabendo onde ir, surgem duas ou mais opcões. Partir ou chegar não são opcões: Sabendo para onde queremos ir, temos forcosamente de ir. Podemos seguir na direccão errada, ou na chegar a hora incerta, mas "Partimos. Vamos. Somos."

Com companheiros, evidentemente. Da verborreia[1] passo agora a uma descricão objectiva: O João e o Pedro esperavam-me. Na Câmara Municipal, ponto de partida de toda e qualquer aventura. Chegando com 5 minutos de atraso, tenho 5 minutos até o próximo metro se aproximar. Óptimo: Tempo para um leve pequeno-almoco. No Símbolo. Sempre aberto. Sempre disponível.

Recomposto, e com um leite achocolatado e um croissant para a viagem, reúno-me aos companheiros que aguardam. Toca o telefone. O Gustavo acordou. "Passa-se que estou atrasado. Passa-se que estou muito atrasado.". Não é necessário desesperar: Há tempo. Há sempre tempo. É sempre possível superarmo-nos. Um bom líder mantém o optimismo. Eu não sou um bom líder, porque não vi as coisas com a realidade e frieza necessárias: Acreditava piamente que era possível ele chegar a tempo. Nem coloquei outra hipótese. No fundo, o objectivo a atingir era percorrer uma linha abandonada, e para isso, poderia sempre viajar de automóvel. Por acaso, tivemos sorte. E o Gustavo teve vontade.

Meanwhile, num outro ponto da cidade de Portucale, atravessavamos a Ponte D. Luís, tiravamos as primeiras fotografias, preparavamos a saída apressada em S.Bento. S. Bento, estacão de metro, e não estacão de comboios. Entramos. Fotografamos mais um pouco. Encontramos a nossa carruagem, o nosso espaco. O João toma café. Eu e o Pedro entramos, confiantes que ele chegará a tempo. E sentamo-nos.

Um silvo agudo ecoa: Um comboio parte. É o nosso. Devia ter usado uma artigo definido. Não importa: Era apenas um comboio. Foi 'O' comboio, mas existiram outras aventuras. E um diferente comboio a trazer-nos.

Não nos pertence. E no entanto, era nosso enquanto nele viajamos.

São 7h50.


[1] verborreia
do Lat. verbu + Gr. rhoía, de rheín, correr
s. f.,
fluência excessiva de palavras;
verbosidade inútil;
logorreia.

sexta-feira, janeiro 06, 2006

Eram 7:25 da manhã

... e o som incansável e agudo cortou o curto espaço que me separava do telemóvel.

Estava escrito, algures, que assim se passariam as coisas. Não me recordo do número de vezes que o som se repetiu, mas recordo sem dificuldade que o ritmo só poderia significar que - no limite do meu estado de consciência - algo tinha falhado e eu não tinha ouvido o 'outro toque do outro ritmo' muitos minutos antes, o alarme.


Do o outro lado a voz do Daniel,
"que se passa?",
"passa-se que estou atrasado", "passa-se que estou muito atrasado",
passava-se o que não se deveria passar, eu que tudo via a caminhar para trás e o comboio para a frente e o tempo que o empurrava e me puxava para trás, o dia que começava e que era encoberto por nuvens de um equacionar rápido de soluções, perguntas e respostas em que cresciam em número, as primeiras a ritmo superior.

Olhei para o relógio. Era muito improvável que o espaço-tempo - essa dupla de Einstein que só atrapalha a vida do comum dos viajantes - me permitisse chegar a tempo ao comboio. A lógica e o desespero gritavam desistir, planear talvez que o comboio seguinte, o seguinte com as perdas que a decisão envolvia... E foi quando olhei para o telemóvel para ligar e transmitir a ideia que reparei que, no canto superior direito do visor de cristais líquidos, algarismos variados apontavam uma realidade diferente da que eu conhecia até então naquela manhã. Aquela era uma realidade que envolvia mais uns minutos que a anterior, e eu comecei a questionar qual das duas realidades seria a real realidade.

O tempo segue no sentido da entropia do Universo. É curioso como dois relógios podem ser duas realidades, a do desistir e a do persistir, a do agonizar e a do tudo tentar, minutos a menos, minutos a mais. Eu optei pela realidade que abria novas portas.

Longe imaginava eu nesta altura o quão longe teria de ir e quão perto estava de ser bem sucedido.

A composição

Locomotiva Série 1400, + precisamente a 1411 - S. Bento - O dia já se sabe qual é...

Capítulo 2: O início da Viagem

A noite apresenta-se nublada, podendo ver-se o reflexo laranja da luz das duas cidades que partilham o rio Douro. De vez em quando caem chuviscos que molham lentamente as nossas roupas, + ou – bem escolhidas para o tempo que faz.

Uma vez que desejava-mos ver as paisagens e caminhar um bocado na linha da Barca D’Alva, nada melhor do que um dia de chuva para o efeito.


Antes de entrar neste veículo mendigado durante anos, tempo houve para recarregar o Andante e para o Sr. Daniel ir comprar o pequeno-almoço.

O Gustavo atrasou-se e disse que iria ter directamente a Campanha.

Entramos no metro, meio ensonados e a viagem decorre rapidamente até à paragem S. Bento.

Saímos. Percorremos o caminho até às escadas rolantes que dão acesso à parte lateral Direita do edifício da Estação de S. Bento.

Entramos pela porta principal. No átrio decorrem obras de manutenção do tecto, apresentando-se aquele grande espaço de espera, circulação e acesso ás plataformas, completamente fragmentado devido aos andaimes que por lá foram instalados. Restam pequenos corredores, ligando directamente à plataforma.

Foi para lá que nos dirigimos fazendo um slalom para chegar às bilheteiras.

Comprámos os bilhetes de ida e volta (dá 10% de desconto) para o Pocinho.

Nas plataformas estão os novos comboios eléctricos do serviço de suburbanos do grande Porto. Sem grandes explicações refiro apenas que são Unidades Múltiplas Eléctricas, fabricadas pela Bombardier e que entraram ao serviço em ……… A sua primeira viagem oficial chegou à plataforma de S. Bento onde está o nosso comboio. A mítica composição com 4 carruagens Sorefame, 1 de 1ªclasse + bar e 3 de 2ªclasse, com uma 1400, mais precisamente a 1411, espera que lhe seja dado o sinal de partida. Daí para a frente serão 3 horas e 39 minutos, pelo horário, até ao Pocinho.

Tempo ainda para uma passagem pelos W.C. e para umas fotos à composição.

As carruagens mais próximas da entrada da estação estão cheias de gente, na sua maioria idosos, que vieram passar o Natal com as suas famílias e agora regressam às lides do campo. A carruagem mais próxima da máquina está deserta, é para aí que nos dirigimos.

Instalamo-nos para que a viagem se inicie…

O sinal passa a verde. O chefe da estação diz ao maquinista que este pode seguir. Este com as suas mãos faz soar a buzina (não sei se está bem escrito) da velha máquina, ao mesmo tempo que acelera, para mergulhar no túnel das…….

Venha o Texto !

Poderei cometer erros, por isso o esclarecimento de determinados aspectos será uma mais valia para este Blog.
Posto isto, cá vai:

Capítulo 1
A Decisão

A perspectiva de se realizar uma viagem, de comboio (refira-se), Douro acima, à muito que estava pensada nas nossas mentes. O ponto de atracção desta viagem desde sempre foi a paisagem. Essa paisagem que Deus elegeu como sua preferida, dotando as suas terras de características únicas para que delas nascesse um dos melhores vinhos do mundo. A Linha do Douro construída (vou ler um bocado sobre a história da linha e depois ponho num comment mais à frente…) permite ao vulgar viajante uma visão única do Rio Douro e das suas encostas. Pontos existem onde o comboio circula tão próximo do rio, que dá a sensação que este mergulhou nas suas águas.

No entanto outra atracção surgiu, agregando-se ao objectivo primeiro, enriquecendo-o e tornando a viagem numa caminhada à aventura e descoberta de trilhos por onde os homens e máquinas andaram, mas que agora se encontram esquecidos e perdidos no tempo, à espera que alguém se lembre deles, da sua história e da sua beleza.

Decidiu-se no dia 25 de Dezembro que 26 seria um bom dia para percorrer estes caminhos. O Daniel está de férias, eu não trabalho e o João e o Gustavo, mesmo avisados em cima da hora, tiveram disponibilidade nas suas agendas.

Marcou-se o início desta aventura para as 7:15 na estação do Metro do Porto: “Câmara Gaia.