Crónicas da viagem a Barca D'Alva

Espaço, silêncio, inspiração e tempo, muito tempo para divagar, meditar e descobrir as ideias e palavras certas...

quinta-feira, março 02, 2006

capítulo 6

Ainda o “gigante de ferro” não parou de frenar, e já se ouvem as Sra’s dos rebuçados.
Parado, por fim na plataforma, levanto-me o vou até à porta da carruagem. Do lado de fora uma sra. Vestida d branco com um cesto de verga no braço esquerdo diz-me: “- Ò menino, não quer um rebuçadinho da Régua, olhe que é para a viagem!”
Espanta-me esta personagem. Seja Verão ou Inverno estão sempre por ali. Aquela plataforma conhece-as como ninguém, e acostumou-se de tal modo a elas que se elas não estiverem por lá sente a sua falta.
São um marco estas vendedoras de doces. Doces da região duriense, baptizados com o nome da sua capital.
Será que o doce, 100% mel é produzido também nas encostas desta terra?

(Investigar a origem do rebuçado da régua…)

Sorrio. É deste modo que retribuo o texto preparado para centenas de viajantes que, durante 10 min., têm na estação da Régua um momento de pausa na viagem.
Compreender-se-ia esta espera, se à cabeça estivesse uma máquina a vapor, sequiosa de água e lenha para poder continuar a subir em direcção à fronteira. Mas os tempos são outros e o som do motor a diesel à muito que substituiu os sons característicos da máquina a vapor.
Talvez por tradição se continue a parar aqui. Poderá especular-se se não será para levar clientela até às sras. dos rebuçados. Mil e uma hipóteses se colocam. Provável seria também, não terem alterado os horários desde o tempo do vapor…
O tempo é passado a conversar sobre o material que jaz nas linhas da estação da régua. Estão por lá enumeras composições que durante anos a fio percorreram para lá e para cá a linha do Corgo.
As explicações e fotos foram subitamente interrompidas pelo som da buzina da 1400, avisando todos os passageiros que estão no cais para entrarem.
Lentamente saímos da estação. Circulamos agora sobre duas linhas, a de sempre, a Linha do Douro que nos há-de levar ao Pocinho e no interior desta, a Linha do Corgo. São poucos quilómetros de um troço único com duas histórias distintas.

(Falar da linha do Corgo…)

A composição avança e passamos ao lado da barragem da Régua. Rapidamente, e sempre com o rio Douro do nosso lado direito fazemos mais uma paragem para permitir mais um cruzamento de composições.
Desta feita, a estação que se segue é o Pinhão. A neblina e a luminosidade do dia transfiguram a paisagem. Podíamos ficar tristes por Alguém não ter querido que o sol aparecesse e revelasse todo o esplendor da região. Mesmo assim, o Douro torneia as condições atmosféricas e mostra-nos uma beleza alternativa. As nuvens “engolem” os montes e a neblina sobre os socalcos afirmam que também merecem atenção. É para lá que se volta a minha objectiva enquanto aguardo pela 1400 que se segue.
Como não chega, volto-me para o lado esquerdo, onde reside a estação. Saio da composição e, um em cada janela, os companheiros desta aventura mostram as suas cabeças.
Com a máquina em punho primo o botão de disparo e registo mais um momento para a posteridade.
Volto-me e tomo atenção à 1411. O enquadramento desta máquina com um velho armazém de madeira escura e uma placa com a inscrição a dizer “Pinhão” são mais um motivo de registo. Interrogo-me sobre que sairá primeiro. Será que é o armazém, já muito antigo e provavelmente único por estas bandas, ou a locomotiva, essa velha máquina inglesa que tem algumas “gémeas” com bilhetes pagos de ida para a Argentina?
Pelo sim, pelo não, e para mais tarde comprovar, acrescento mais uma foto à conta da minha máquina.
Desta vez quem cruza connosco é a 1455. As carruagens que trás a reboque, para não variar, são 4 e iguais às da nossa composição.
Efectuado o cruzamento, temos sinal para avançar.
O Douro continua a revelar-se, e o tão característico barco rabelo surge por entre o nevoeiro.
Sito na outra margem perto de um cais e com um monte enevoado como pano de fundo, tem-se um cenário muito característico. Poderia tentar perder horas a descrever a paisagem, mas se existem alturas em que uma imagem vale mais que mil palavras, esta é sem dúvida uma delas…
Para desentorpecer as pernas resolvemos passear até à ultima carruagem. O serviço de bar cessou a sua actividade na Régua. O balcão do bar está agora vazio. Esta carruagem é mais antiga que as outras três, contudo não consigo encontrar a placa de fabrico no seu interior. Percorro o espaço amplo do bar até uma porta que dá acesso aos compartimentos de 1ªclasse. Alguns deles estão vazios, noutros as pessoas que neles viajam conversam, dormem ou lêem o jornal do dia. A porta que daria acesso a outra carruagem, se houvesse, está fechada. Torna-se por isso um sítio seguro e privilegiado para fotografar o caminho que percorremos.
Por entre as fotos surge uma tertúlia acerca da idade dos constituintes da linha. Perto do Tua, esta linha tem tido alguma manutenção ao longo dos tempos. A queda de pedras tem provocado alguns danos que requereram uma intervenção mais profunda em alguns pontos.
Mais para frente a linha, que está limitada a velocidades inferiores, tem mais elementos de origem. Contudo discutiu-se sobre a idade de algumas das travessas. Apostou-se que poderiam ser do tempo da rainha Dna. Amélia.
Mais conversação sobre temas ligados à ferrovia e da janela avistam-se alguns trabalhadores que, depois do Natal voltam à linha para reparar aqui e ali uns pontos que merecem mais atenção.
Passamos uma ponte e chegamos à estação do TUA. Aqui, muitas das pessoas que viajavam connosco saem e atravessam a linha para do outro lado apanharem o dito metro de Mirandela.
As composições são em tudo iguais às das outras linhas de via estreita que complementam a Linha do Douro. A diferença está na cor. Enquanto que as das linhas anteriores são vermelhas estas são verdes, ou pelo menos eram, ou aparentam ser por entre os grafitis que ao longo do tempo foram tomando estes veículos.
No comboio ficam meia dúzia de viajantes que anseiam a chegada ao Pocinho. Estes resistentes acomodam-se agora mais à vontade.
Sem cruzamentos, o tempo que a composição está parada é gasto a fotografar as pessoas que saem e os velhos veículos de via estreita que apodrecem nas linhas de resguardo. Estão uma máquina a vapor e algumas carruagens pré-históricas, do tempo da inauguração da linha num coberto. Nas linhas de resguardo estão algumas, talvez as únicas, carruagens Napolitanas que conheço.
Do fundo da composição mal se ouve a buzina e o movimento lento da carruagem a afastar-se em direcção ao Pocinho é o único aviso para todos os sentidos. Ao reparar nisso entrámos à pressa pela última porta.